terça-feira, 13 de outubro de 2009

A PROFANAÇÃO DO SAGRADO NO DIÁLOGO DE SARAMAGO COM A BÍBLIA

Nos dias de hoje já não é possível viver idolatrando a ciência e o progresso, pois as pessoas não acreditam nessas entidades com a mesma fé do século passado.
Diz-nos Gilberto Kujawski, em O sagrado existe, que “é possível suspender o juízo sobre a existência de Deus, e desprezar as ultimidades (o mistério da vida e da morte) quando se crê com fé inabalável na Ciência e no Progresso” (GMK, p. 8), pois
(...) quando tais crenças começam a falhar, quando se descobre que a Ciência não nos põe em contato com a realidade, e sim com um esquema estatístico de probabilidade, e que o Progresso automático e irreversível não existe, então não se tem mais remédio senão ouvir de novo o apelo da transcendência e voltar à senda imemorial do sagrado (GMK, p. 8).
Se os mitos falharam, isto quer dizer que precisamos redescobri-lo em todo o seu esplendor. “O mito é aquela mentira primordial que nos desvela o corpo da verdade” (GMK, p. 9), definindo-se como uma narrativa arquetípica. Os feitos da história e da razão passam, mas o mito permanece, porque sua função será sempre a de fazer crescer nossa conscientização, colocando-nos em plena harmonia vital e intelectual com a realidade.
Gilberto de Mello Kujawski cita duas leituras que vieram incentivá-lo na elaboração de O sagrado existe, e uma delas foi o romance de José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, “saudado efusivamente, dos dois lados do Atlântico, pelo entusiasmo unânime da crítica, o que não era de deixar de ser um ponto intrigante” (GMK, p. 11), pois segundo o ensaísta, “Saramago se declara ateu, militante histórico do Partido Comunista em Portugal. Ele é ateu por convicção pessoal e ideológica” (GMK, p. 11). Diz-nos que Saramago também se orgulha de ser homem do povo, identificado com as crenças e as tradições populares de sua terra. “Eis conflagrada a tensão, a ambigüidade: como indivíduo, Saramago é ateu, e como homem do povo não escapa de ser crente, ligado à tradição de sua gente” (GMK, p. 11).
Tanto é verdade que, ao ser entrevistado pela imprensa em São Paulo, José Saramago declarou: “Somos todos cristãos em Portugal, se não professos ao menos nadamos todos neste caldo de cultura. Alguma relação temos que ter com ele, nem que seja crítica”.
Segundo Kujawski, a santa dialética vem em socorro do grande escritor, mostrando-lhe a saída:
(...) Sua relação com o cristianismo será crítica. Pois é nessa ambigüidade fundamental que está a força do seu livro, e, aliás, de todos os seus livros: a crítica assumindo a forma de constante ironia, quando esquecida de si mesma, convertendo-se em lirismo. (...) Saramago não crê em bruxas (...) (GMK, p. 11).
O texto saramagueano é tecido de paródia e ironia. Sabemos que o melhor da ficção portuguesa é feito de ironia, pelo menos desde Gil Vicente, prosseguindo com Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa.
Gilberto Kujawski salienta ser a ironia o apanágio do romantismo e associa esse romantismo a Saramago, por ser ele orgulhoso de sua raiz popular, dizendo-nos que não há maniqueísmo em sua posição diante de Saramago, apenas matizamento na avaliação crítica. O que não o impede de reconhecer que “a interpretação da crença popular em Saramago, resvala freqüentemente para o grotesco e o caricato” (GMK, p. 11). Para exemplificar, faz uma uma analogia entre a fé do carvoeiro e o ateísmo do autor de O evangelho segundo Jesus Cristo:
Saramago, escritor de talento, inverte a fórmula cediça e descobre algo que está aí, mas que ninguém reparara - o ceticismo do carvoeiro: a falta de fé rude, agreste, desajeitada, saloia, própria do campônio que tira o chapéu em respeito ao senhor cura, passando a enrolá-lo nas mãos com embaraço que trai sua profunda suspicácia anticlerical, tão vigorosa e inabalável do povo em matéria de fé (GMK, p. 12).
Ao presenciarmos o posicionamento de Gilberto Kujawski, não nos cabe, neste estudo, concordar ou discordar de sua opinião. Se a situamos, foi para mostrar que as interferências bíblicas do texto saramagueano podem causar impacto em relação à desmitificação de Jesus.
O evangelho segundo Jesus Cristo é um romance que, através de um narrador onisciente, relata a história de Jesus numa visão bastante irônica e paródica, transcontextualizando a versão dos evangelistas bíblicos.
Ao lermos o texto saramagueano, temos a impressão de estarmos diante de um narrador distanciado da explicação religiosa que tem sido conferida ao longo do tempo a determinadas passagens bíblicas (tanto as do Antigo como as do Novo Testamento), dessacralizando-as através da profanação das figuras de Deus e de Cristo.
No Antigo Testamento, Deus tem sido mostrado como Senhor dos exércitos, que se ira contra o comportamento do homem e o pune severamente, até com a destruição. O narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo procura desmitificar este Deus vingador, fazendo dele um ser menor, ou seja, dá maior dimensão ao Diabo, ao qual enaltece-o, chegando mesmo a colocá-lo igual a deus, e, em alguns casos, até superior moralmente, por ser ele, o Demônio, muito mais previdente, solidário, mais próximo do homem, e até mais benevolente.
Ao se encontrar com Maria, na festa da Páscoa em Jerusalém, Jesus é alertado por ela em relação ao Pastor com quem esteve trabalhando e que Maria acusa de ser o Diabo. Mas mantém-se resistente, porque não queria sacrificar a Deus a ovelha, que criara com desvelo, e diz à sua mãe que “quando um e outro estão de acordo, não se pode distinguir um anjo do Senhor, de um anjo de Satã” (ESJC, p. 254). Assim, Cristo confessa à Maria que se for para salvar o cordeiro pelo Diabo, ele (Cristo) então está com o Diabo.
Em relação aos milagres, ainda conforme o discurso crítico, o narrador ironiza-os, a partir de um expediente temporal:
(...) o tempo dos milagres, ou já passou, ou ainda está para chegar, além disso, milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores (ESJC, p. 77).
Nessa sua visão de Deus, de Jesus e dos milagres, o narrador apresenta-nos um outro deus, um outro Jesus, e outras manifestações milagrosas, sem a derrogação das leis naturais e sem também torcer a lógica.
O deus que nos é apresentado no texto saramagueano é, de fato, bem menor que Deus, enquanto o Jesus nos é apresentado como sendo um homem comum, com defeitos, vícios e imperfeições. Afinal, Roger Caillois, em O homem e o sagrado, nos diz que:
(...) a religião é universalista, mas também, de modo correlato, personalista. Tende a isolar o indivíduo de forma a situá-lo em face de um deus que ele conhece, então, menos por ritos do que por uma efusão de criatura e criador. O sagrado torna-se interior e já não interessa senão a alma. Vê-se crescer a importância da mística e diminuir a do culto.
Dentro da literatura contemporârea, o texto saramagueano confirma que “tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível” (ESJC, p. 18).
Ao discutir o fazer histórico na literatura, Affonso Romano de Sant’Anna, em História e ideologia, afirma que:
(...) se nas narrativas modernas o personagem pode razonar sua história e afetar os eventos em curso, (...) devemos começar por considerar alguns componentes dramáticos de ficção real de nossos dias, procurando conhecer o que foi nossa recente discursividade até agora.
Affonso Romano também nos diz que a nossa geração foi educada dentro do conceito de história que tem, na realidade, dupla leitura: “uma é teológica judaico-cristã e a outra é sócio-política”. Segundo ele, na vertente sócio-política, ensinaram-nos que a história era um trajeto entre a opressão e a liberdade, isto é, uma história em progresso, configurada entre um jogo dialético de teses, antíteses e sínteses. Já o texto cristão nos foi passado através da fala dos profetas e dos manuscritos dos evangelistas.
Segundo Affonso Romano, fazer história hoje em dia é subverter, inverter, revolucionar. “História é a emergência do eu, da burguesia e do povo. História é diferença e paródia”, pois a modernidade e a síndrome da ruptura teriam paradoxalmente se esgotado naquilo que outros nomearam de pós-modernidade, ou seja, a não mais se romper, mas em colocar os diversos passados no presente, jogando com a dualidade de destruicão/reconstrução.
No dizer de Affonso Romano:
Hoje sabemos que não há uma história. A grande redescoberta epistemológica, antiga, mas revivificada nos nossos dias é a descoberta da “leitura”. A História é uma construção discursiva e simbólica, e cada “leitor” ou analista produz o seu sentido, o mais verossímil possível em relação ao ponto de observação em que se situa. História é a liberdade de viver e criar histórias.
A citação acima nos conduz à abordagem de Linda Hutcheon em relação à ideologia da modernidade que não nega a existência do passado, mas questiona-o através de sua escritura, já que a História não existe a não ser pelo texto, e isso não nega a História.
Ancorados ainda nos fundamentos teóricos de Linda Hutcheon, em Uma teoria da Paródia, vamos percorrer as páginas do romance saramagueano, mostrando que Saramago, nesse romance, tenta restabelecer uma aliança com a tradição de forma mais crítica, e não nostálgica, dentro dessa visão de modernidade, ao contrário dos escritores modernos que esgotaram as possibilidades de ruptura com o antigo.
O que se faz hoje em dia não é necessariamente melhor do que o anterior, é uma outra leitura, pois o discurso intertextual ou paródico é um discurso de revitalização do antigo. A paródia, para Linda Hutcheon, é um dos modos maiores de construção formal e temática de textos, possuindo, também, uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas. “O escritor deve estar em pé de igualdade com o leitor/ouvinte num esforço comum para elaborar sentidos a partir de uma linguagem comum a ambos” (LH, p. 16).
O evangelho segundo Jesus Cristo é uma ficção historiográfica, que tem como suporte uma consciência teórica sobre a História e a ficção como criações humanas, passando, desse modo, a ser a base para que o autor e o leitor repensem e reelaborem as formas e os conteúdos do passado.
A seguir, através das teorias de Roberto Vacca e Umberto Eco, promomo-nos a fazer uma analogia da época atual com a Idade Média.

Uma nova Idade Média

A próxima Idade Média, de Roberto Vacca, aborda uma futura situação de crise generalizada, nos países desenvolvidos, tendo como duração talvez um século em lugar de um milênio, sendo esta duração menor do que a Idade Média anterior.
Segundo Vacca:
a expressão próxima Idade Média compreenderá três hipóteses: que uma era de desordem, destruição e deteriorização esteja para começar; que este início seja iminente; e que esta era será seguida por outra de Renascimento.
Hoje, segundo Vacca, “estamos muito mais predispostos a fazer previsões e planificações do que o fomos no passado”. Sua convicção faz com que anuncie que uma nova era medieval já está no início, ainda mais se considerarmos que só se começou a falar em Idade Média passada, depois que ela terminou. Sabe que não será difícil acusarem seu livro de catastrófico e de pessimista pelas teses que defende.
Uma de suas teses é a de que a proliferação dos grandes sistemas até atingirem dimensões críticas instáveis e antieconômicas será seguida por uma de deteriorização rápida, tanto quanto a expansão precedente, e será acompanhada por numerosos acontecimentos catastróficos. Serão duas as características principais que deverão ser reconhecidas como sintomas da próxima Idade Média: a primeira será uma brusca diminuição da população; a segunda, um dilaceramento dos grandes sistemas e sua transformação num grande número de pequenos subsistemas independentes e autárquicos.
Vacca não vai antecipar um despertar religioso. Quer apenas mostrar os modos pelos quais os grandes sistemas cresceram desmedidamente e que devem ser analisados a fim de se conhecerem as causas de sua deteriorização. Os dramas a que se refere se constituirão de heca-tombes de população muito mais notáveis do aquelas causadas pelas grandes guerras, pelos acidentes de tráfego e pelas epidemias. Enfim, Vacca tem como ponto de vista que “todos nós somos profetas, não tanto porque decidamos sê-lo, mas por absoluta necessidade”.
Em Viagem na irrealidade cotidiana, Umberto Eco faz um estudo sobre a profecia de Vacca, questionando se o roteiro de Vacca é realmente apocalíptico ou se é a enfatização de algo que já existe. Tenta livrar a noção da Idade Média da aura negativa com que a maioria das pessoas a vêem. Segundo Eco, vivemos numa época em que “aquilo que acontece em cinco anos pode às vezes equivaler ao que sucedia em cinco séculos”.
A meta de Eco é traçar um objetivo preciso para medir as tendências e situações de nosso tempo que possam se assemelhar àquelas da Idade Média. Diz-nos que estamos vivendo uma crise da paz e traça um paralelo medieval, mostrando-nos que a Idade Média via como intimamente ligados o decréscimo de população, o abandono das cidades e a carestia dos campos, a dificuldade de comunicação e também a crise do controle central.
Hoje, segundo Eco, parece acontecer o oposto, pois o excesso de população, que interage com o excesso de comunicação e transportes, faz com que as cidades se tornem inabitáveis não por destruição e abandono, mas por paroxismo de atividade, pela poluição atmosférica e pelo acúmulo de lixo que deturpa e torna irrespiráveis as grandes construções que se renovam. Desse modo, as cidades ficam cheias de imigrantes, mas esvaziadas de seus habitantes antigos que somente a usam para trabalhar.
De um modo geral, os trabalhadores menos favorecidos moram em subúrbios ou favelas, enquanto a classe mais abastada retira-se para fora da cidade, construindo bairros elegantes e autônomos. Ainda segundo Eco, o paralelo se inverte para ser restabelecido, pois
(...) um enorme desenvolvimento tecnológico provoca bloqueios e desarranjos (...). Por outro lado, a sociedade de consumo no mais alto nível não produz objetos perfeitos (...) e a civilização está se tornando uma sociedade de objetos usados e inúteis: (...) enquanto assistimos a desmatamentos, abandono dos cultivos, poluição hídrica, atmosférica e vegetal, desaparecimento de espécies animais (...).
No dizer de Eco, essa nova Idade Média será uma época de transição permanente na qual serão adotados novos métodos de adaptação:
(...) o problema não será tanto o de conservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na lógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo, uma cultura de readaptação contínua nutrida de utopia (...). A Idade Média conservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para contínua retradução e reutilização, (...).
De acordo com as teorias de Roberto Vacca e de Umberto Eco, relacionadas à Idade Média, podemos compreender perfeitamente não apenas o comportamento intelectual do homem como também todo o seu comportamento vivencial.
Poderíamos chamar a época atual de uma Idade Média invertida ou às avessas, isto é, na antiga Idade Média tudo era proibido e a proibição se fazia a ferro e fogo. Na atual, ao contrário, tudo é permitido. Na primeira, elaborava-se às escondidas o surgimento de uma Nova Era, ou seja, o chamado Renascimento artístico, literário e científico. Na atual, mesmo sem o saber, o homem está elaborando, vide Eco, o surgimento de uma Nova Era, um grau maior de espiritualização, quando também as artes, a filosofia e a ciência encontrarão o seu verdadeiro caminho, criando uma nova civilização.
No momento, os valores antigos são contestados, combatidos e, muitos, destruídos. Nunca se teve tanta liberdade para discutir e analisar Deus quanto agora. O sagrado é vasculhado, pesquisado e analisado. Os homens nada temem, tudo discutem, aceitam ou recusam sem nenhum medo de qualquer represália, uma vez que estão vivendo um período de liberdade quase absoluta.
Esse mundo é muito parecido com aquele inferior, citado pelo narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo. Trata-se de uma história, na verdade uma criação saramagueana aos moldes bíblicos da parábola, contada por um grupo de viajantes em Jerusalém e presenciada por Jesus, quando menino, falando sobre a criação feita pelo Diabo de um mundo subterrâneo, onde tudo é permitido e, portanto, o pecado não existe:
(...) E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, (...) diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro (ESJC, p.235-6).
Hoje, no nosso mundo, os tabus caem, o pecado desaparece e a ação humana se realiza quase com liberdade total.
A teoria de Vacca está sendo comprovada nos nossos dias. E é com base nela que o sagrado e o profano se interagem.
Podemos até compreender o porquê de o texto saramagueano ironizar a figura de Deus, pois, geralmente, as interpretações teológicas apresentam um Deus vingativo, castigador, perseguidor e destruidor. A matança dos inocentes, por exemplo, o narrador coloca-a como responsabilidade de Deus, já que este era o Senhor de seu servo José, a quem é atribuída diretamente a morte das crianças inocentes:
Mas é bem verdade que a recta escrita de Deus só em pouco coincide com as tortas linhas dos homens, vejamos o dito caso de Abraão, a quem apareceu o anjo a dizer, no último momento, Não levantes a mão sobre o menino, e veja-se o caso de José, que tendo Deus, em lugar do anjo, posto no seu caminho um cabo e três soldados faladores, não aproveitou o tempo que tinha para salvar da morte os meninos de Belém. Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que Deus salvou a Issac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor (ESJC, p. 144).
Com base nesse acontecimento, o narrador coloca em Jesus um sentimento de revolta contra seu pai e o próprio Deus:
E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virá a nós para reconheceres os teus erros perante os homens (ESJC, p. 144).
A pouco e pouco, Saramago vai desvestindo Jesus de suas virtudes sacralizadoras e im-pregnando-o das imperfeições humanas. De homem santo, acaba sendo, segundo a pena sara-magueana, igualado aos frágeis mortais pecadores.
O Deus, onipotente, onipresente, onisciente, misericordioso e justo, também não é pos-suidor de nenhum desses atributos, porque é o autor do sofrimento do homem e criando o pe-cado, transformou o homem em pecador pelos excessos que comete:
Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a uma espécie humana em peso, talvez uma combustão assim intensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido (ESJC, p. 169).
O santo dos santos é diminuído até se tornar menos sábio que o próprio Diabo que, segundo a tradição cristã, foi um espírito criado por Deus, que por orgulho foi expulso do Paraíso e, segundo Saramago, embora decaído, criou o seu mundo muito mais justo que o criado por Deus. Para ele, o Diabo é um antiDeus e, como deus, é maior que Deus: (...) Ora, quando tal sucede, isto é, quando se tornou patente que Deus não vem nem dá sinal de chegar tão cedo, o homem não tem mais remédio que fazer-lhe as vezes e sair de sua casa para ir pôr ordem no mundo ofendido, a casa que é dele e o mundo que a Deus pertence (ESJC, p. 139).
Dessa forma, a narrativa de Saramago contribui para confirmar a teoria de Vacca: o homem vivendo de acordo com os seus próprios desejos, instintos, sem nenhuma preocupação com o futuro, criando para si mesmo uma era inercial, sem perspectivas futuras e, naturalmente, sem nenhum avanço espiritual: Uma Nova Idade Média às avessas, com certeza.


A profanação do sagrado

Através da teoria de Mircea Eliade, vamos presenciar os personagens do romance saramagueano transcontextualizados, sem a aura mítica, desmitificados e, dessa forma, perfeitamente capazes de terem uma vida igual a de todos os seres humanos.
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratá-lo na acepção usual do termo, isto é, como fábula, invenção, ficção, aceitaram-no tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. O mito é considerado uma história sagrada, verídica, porque sempre se refere a realidades.
De acordo com Mircea Eliade, em Mito e realidade, “nas histórias verdadeiras, defrontamo-nos com o sagrado e o sobrenatural; as falsas, ao contrário, têm um conteúdo profano” (MR, p. 14).
Segundo Mircea, os primeiros teólogos cristãos tomavam esse vocábulo na acepção que se impusera há muitos séculos no mundo greco-romano, isto é, de fábula, ficção, mentira. Conseqüentemente, recusavam-se a ver na pessoa de Jesus uma figura mítica e, no drama cristológico, um mito. A partir do século II, a teologia cristã teve de defender a historicidade de Jesus simultaneamente contra os gnósticos, bem como contra os filósofos pagãos.
No dizer de Mircea Eliade,
A presença maciça dos símbolos e elementos cultuais solares ou de estrutura misteriosa, no cristianismo, encorajou alguns sábios a rejeitar a historicidade de Jesus, (...) Ao invés de postular, no início do cristianismo, um personagem histórico do qual nada se pode saber, devido à “mitologia” da qual foi rapidamente revestido, esses sábios postularam, ao contrário, um “mito” que foi imperfeitamente “historicizado” pelas primeiras gerações de cristãos (MR, p. 142).
Os padres deram provas de espírito crítico e orientação historicista ao se recusarem a considerar os Evangelhos apócrifos e as logias agrapha como documentos autênticos. Eles abriram, não obstante, as portas para longas controvérsias no seio da Igreja e facilitaram a ofensiva dos não-cristãos ao aceitar não um, mas quatro Evangelhos. “Como havia diferenças entre os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de João, foi preciso explicá-las pela exegese” (MR, p. 146).
Para Mircea, o exegeta deve ser capaz de se livrar dos materiais históricos, pois estes não passam de um trampolim. Insistir excessivamente na historicidade de Jesus, negligenciar o sentido profundo de sua vida e de sua mensagem, é mutilar o cristianismo, já que “os homens ficam maravilhados quando consideram os eventos de Jesus, mas se tornam céticos quando lhes é revelada a significação profunda, que eles se recusam a aceitar como verdadeira” (MR, p. 146).
Mircea Eliade diz-nos que ao proclamar às nações a divindade de Jesus Cristo, as primeiras gerações de cristãos proclamavam implicitamente sua trans-historicidade. Não que Jesus não fosse considerado um personagem histórico; mas acima de tudo salientava-se que “ele era Filho de Deus, o Salvador Universal que redimira não somente o Homem, mas também a Natureza” (MR, p. 146). Mais ainda: “a historicidade de Jesus já havia sido transcendida por sua Ascensão ao Céu e por sua reitengração na Glória divina” (MR, p. 146).
Ao proclamar a encarnação, a ressurreição e ascensão do verbo, os cristãos estavam convictos de que não apresentavam um novo mito. Na realidade, eles se utilizavam das categorias do pensamento mítico. Evidentemente, eles não podiam reconhecer esse pensamento mítico nas mitologias dessacralizadas dos pagãos e eruditos seus contemporâneos. Mas é óbvio que, para os cristãos de todas as confissões, o centro da vida religiosa é constituído pelo drama de Jesus Cristo.
A experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo exemplar, na repetição da litúrgica da vida e morte do Senhor, e na contemporaneidade do cristão com o illud tempus, que se inicia com a natividade em Belém e se encerra, provisoriamente, com a ascensão.
Entretanto, embora “o Tempo litúrgico seja um tempo circular, o cristianismo, herdeiro fiel do judísmo, aceita o Tempo linear da História” (MR, p. 147), pois “o Mundo foi criado uma única vez e terá um único fim; a Encarnação teve lugar uma única vez no Tempo histórico, e haverá um único Juízo” (MR, p.147).
Desde o início, o cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnoticismo, do judaísmo e do paganismo. A reação da Igreja não foi uniforme. Os padres desencadearam uma luta sem tréguas contra o esoterismo da gnose; conservaram, entretanto, os elementos gnósticos apresentados no Evangelho de João, nas Epístolas Paulinas e em certos textos primitivos:
(...) tudo gira em torno da salvação do homem por Cristo; da fé, da esperança e da caridade; de um Mundo que é “bom” porque foi criado por Deus Pai e redimido pelo Filho; de uma existência humana que não se repetirá e que não é destituída de significação; o homem é livre para escolher o bem ou o mal, mas ele não será julgado apenas por essa causa (MR, p. 150).
De acordo com Mircea Eliade, o pensamento mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas pela História, pode adaptar-se às novas condições sociais e às novas modas culturais, mas ele não pode ser extirpado. É possível que, nunca antes na história, “o artista tenha estado tão certo como hoje de que, quanto mais audacioso, iconoclasta, absurdo e inacessível ele for, tanto mais será reconhecido, louvado, mimado, idolatrado” (MR, p. 161).
O mito do artista maldito, que obsedou o século XIX, está hoje obsoleto, pois
(...) a audácia e a provocação há muito deixaram de ser prejudiciais ao artista. Ao contrário, pede-se que ele se amolde à sua imagem mítica, que seja estranho, irredutível e que “produza algo de novo”. É o triunfo absoluto da revolução permanente na arte. “Tudo é permitido” deixou de ser uma formulação adequada: qualquer inovação é considerada genial (MR, p. 161).
Pela primeira vez na história da arte não existe mais tensão entre os artistas, os críticos, os colecionadores e o público. Todos estão sempre de acordo, e muito antes de uma nova obra ser criada ou de um artista desconhecido ser descoberto. Uma única coisa importa: não correr o risco de ter de admitir um dia que não se compreendeu a importância de uma nova experência artística.
Sabe-se que, assim como outros gêneros literários, a narrativa épica e o romance prolongam, em outro plano e com outros fins, a narrativa mitológica. Em ambos os casos, trata-se de contar uma história significativa, de relatar uma série de eventos dramáticos ocorrido num passado mais ou menos fabuloso:
(...) é possível dissecar a estrutura “mítica” de certos romances modernos, demonstrar a sobrevivência literária dos grandes temas e dos grandes personagens mitológicos. Poder-se-ia dizer que a paixão moderna pelos romances trai o desejo de ouvir o maior número possível de “histórias mitológicas” dessacralizadas ou simplesmente camufladas sob formas profanas (MR, p. 164).
Finalizando, Mircea Eliade nos diz que a saída do tempo produzida pela leitura é a que mais aproxima a função da literatura à das mitologias:
O leitor é confrontado com um tempo estranho, imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo primordial dos mitos; mas na medida que conta uma história verossímil, o romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos imaginários (MR, p. 164).
Talvez seja por isso que sentimos na literatura uma revolta contra o tempo histórico, o desejo de atingir outros ritmos temporais além daquele em que somos obrigados a viver e a trabalhar.
Ao iniciarmos a leitura de O evangelho segundo Jesus Cristo, imaginamos que a narrativa seria atribuída ao próprio Jesus e, para nossa surpresa, deparamo-nos com um narrador onisciente que nos relata toda a trajetória de nascimento, vida e morte de Jesus.
Julgamos que, numa proposta bastante ousada, esse narrador, ao nos contar o seu evangelho, tem uma visão bem diferente das dos quatro evangelistas bíblicos. Faz uma reviravolta nessa história, inverte, subverte e tenta profanar o que historicamente tem sido considerado sagrado para aqueles que acreditam no mistério da vida e da morte e na mensagem deixada por Jesus.
Poderíamos dizer que esse narrador faz uma repetição com diferença, trabalha com o texto bíblico numa articulação intertextual, pois segundo Laurent Jenny, podemos falar em intertextualidade quando encontramos num texto elementos anteriormente estruturados, quando temos uma idéia ou uma imagem contida nas entrelinhas, que estabelecem a mesma relação nos dois textos, sendo que essa relação pode até ser de inversão ou encenação fictícia recuperada, adaptada, pervertida ou contradita.
Para Jenny, intertextualizar é introduzir um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto e opera no leitor dois processos simultâneos; prosseguimento da leitura, “vendo apenas um fragmento como qualquer outro” e a volta ao texto de origem, fazendo da referência um elemento paradigmático ou deslocado, despertando uma sintagmática esquecida e um sentido já estabelecido.
Isso faz com que o discurso intertextual seja mais poderoso, torna-o uma super-palavra, pois seus constituintes são coisas ditas e às vezes sacralizadas, vindo de uma língua cujo vocabulário é a soma de todos os textos existentes, assumindo, desse modo, uma densidade excepcional de poder, riqueza e força, pois o texto de origem está virtualmente presente, portador de todo o seu sentido, sem que haja necessidade de enunciá-lo. Nesse sentido, o texto renuncia a seu aspecto temporário, “já não fala, é falado (...) como na reconstrução mítica em que colecionam mensagens pré-transmitidas para as reagrupar em novos conjuntos”.
Assim, começamos a presenciar, através do discurso saramagueano, um Jesus humanizado, conforme veremos na seleção dos exemplos abaixo: “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou, porque o fizeram chorar e chorará por esse mesmo e único motivo” (ESJC, p. 83).
A seguir, o narrador refere-se ao nome de Jesus comparando-o, na sua inconsistência de recém-nato, ao pinto, ao cachorro e ao cordeiro: “(...) Jesus, mas ele ainda não pode saber que este é o seu nome, por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto de uma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha, (...)” (ESJC, p. 89).
Ainda com o mesmo objetivo de igualar Jesus a todos os homens, fala sobre sua sexualidade: “A boca encheu-se do sabor adocicado do leite materno, e a ofensa entre as pernas, insuportável antes, tornou-se distante, dissipava-se numa espécie de nascer, como se o detivesse um limiar, uma porta fechada ou uma proibição” (ESJC, p. 89), e de sua necessidade de alimentação, dizendo que a pede com voz de choro, como todas as crianças pequenas: “Jesus acordou (...) e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer um de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas “ (ESJC, p. 89).
O diálogo entre Maria e o anjo, a respeito da paternidade de Jesus, vem confirmar mais uma vez a dessacralização do discurso bíblico e a utilização parodística, pois, segundo o narrador, numa chuvosa e fria noite de inverno, um anjo entrou em casa de Maria de Nazaré, e dirigiu-lhe diretamente a palavra: “Deves saber, ó Maria, que o Senhor pôs a sua semente de mistura com a semente de José na madrugada em que concebeste pela primeira vez, e que, por conseguinte e conseqüência, dela, da do Senhor, e não da do teu marido, ainda que legítimo, é que foi engendrado o teu filho Jesus” (ESJC, p. 311).
Maria muito assombrada:
(...) Então, Jesus é filho de mim e do Senhor, Mulher que falta de educação, deves ter cuidade com as precedências, do Senhor e de mim é que deverias dizer, Do Senhor e de ti, Não, do Senhor e de ti, Não me baralhes a cabeça, responde-me ao que te perguntei, se Jesus é filho, Filho, o que se chama Filho, é só do Senhor, tu, para o caso, não passaste de ser uma Mãe portadora, Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor ia só a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda te lembras de como estas necessidades se manifestavam, apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus, (...) (ESJC, p. 311-12).
Maria insiste com o anjo sobre a veracidade do que está a lhe contar:
E há certeza, o que se chama certeza, de que tenha sido mesmo a semente do Senhor que engendrou o meu primeiro filho, Bom, a questão é melindrosa, o que tu estás a pretender de mim é, sem tirar nem pôr, uma investigação de paternidade, quando a verdade é que nestes conúbios mistos, por muitas análises, por muitos testes, por muitas contagens de glóbulos que se façam, certezas nunca as podemos ter absolutas (...) (ESJC, p. 312).
Maria duvida: “(...) Um filho do Senhor, mesmo tendo-me a mim como mãe, dávamos por ele logo ao nascer, e quando crescesse, teria, do mesmo Senhor, o porte, a figura e a palavra, ora, ainda que se diga que o amor de mãe é cego, o meu filho não satisfaz as condições, (...)” (ESJC, p. 312).
O anjo, em confidência, diz à Maria:
(...) o Senhor não saberia viver doutra maneira, a palavra que mais sai da boca não é um sim, mas o não, Sempre ouvi dizer que o Diabo é que é o espírito que nega, Não minha filha, o Diabo é o espírito que se nega, se no teu coração não deres pela diferença, nunca saberás a quem pertences, Pertenço ao Senhor, (...) (ESJC, p. 312).
Após o diálogo com o suposto anjo do Senhor, Maria pede a Tiago e José para irem procurar Jesus e trazerem-no de volta, pois ela não mais duvidava do que de ele (Jesus) fosse o filho de Deus.
Quando José e Tiago encontram finalmente Jesus, ele se recusa a voltar para junto de sua família e indaga:
Quem é minha mãe, quem são os meus irmãos, meus irmãos e minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora em que eu a proferi, meus irmãos e minha mãe são aqueles que em mim confiam quando vamos ao mar para do que lá pescam comerem com mais abundância do que comiam, minha mãe e meus irmãos são aqueles que precisem esperar a hora de minha morte para se apiedarem da minha vida, (...) (ESJC, p. 324).
A transcontextualização paródica é muito evidente na exemplificação acima, pois as citações bíblicas, contidas no Evangelho de Lucas e de Mateus, são as seguintes:
E foram ter com ele sua mãe e seus irmãos, e não podiam se aproximar dele, por causa da multidão. E foi lhe dito: Estão lá fora tua mãe e teus irmãos, que querem ver-te. Mas respondendo ele, disse-lhes: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e as executam (Lc 8, 19-21).
E disse-lhe alguém: eis que estão lá fora tua mãe e teus irmãos, que querem falar-te, porém, ele respondendo, disse ao que falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; porque, qualquer um que fizera a vontade de meu pai que está nos Céus, este é meu irmão, e irmã e mãe (Mt 12, 47-50).
Desse modo, notamos em toda a narrativa de José Saramago uma construção ficcional que retoma os elementos bíblicos, tecendo um jogo intertextual. Conforme presenciamos, a paródia no romance saramagueano age com toda a sua força dessacralizadora e desmitificadora, executando uma verdadeira profanação no sagrado dogmático e oficial. O narrador irônicamente contextualiza as passagens bíblicas e propõe a instauração da desordem transcendente nessa sua narrativa, avessa ao discurso ideal da tradição e expressando o mundo caótico da modernidade:
Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não se veja transformado em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridade (ESJC, p. 222).
E continua:
E também dizem que é esse o processo narrativo que melhor serve o sempre desejado problema de verossimilhança, pois se o episódio imaginado e descrito não é nem poderá tornar-se nunca um facto, em dado da realidade, e nela tomar lugar, ao menos que seja capaz de o parecer, não como relato presente, em que de modo tão manifesto se abusou da confiança do leitor, levando-se Jesus a Belém para , dar de caras , mal chegou, com a mulher que esteve de aparadeira no seu nascimento, como se já não tivesse passado das marcas do encontro e os lamirés adiantados pela outra que vinha de filho ao colo, ali de propósito colocada para as primeiras informações (ESJC, p. 222).
Saramago, dessa forma, apresenta o seu descompromisso com uma moral e uma religião ortodoxas, encontrando, no entanto, na Bíblia os elementos para a sua narrativa ficcional.


Conclusão

Vivemos uma época em que tudo é permitido, uma época de discussão, de contestação, de questionamento de tudo o que a história, as artes, as ciências, a filosofia e a religião nos legaram.
Exatamente por isso, surgem, de quando em quando, obras paródicas, abordando temas bíblicos, como é o caso desse estudo.
Assim, ao percorrermos as páginas de O evangelho segundo segundo Jesus Cristo, pudemos conhecer uma nova versão da história do nascimento, vida e morte de Jesus, através de um narrador, que se autonomeia um evangelista.
Tivemos a oportunidade de verificar a narração de fatos coincidentes com o Evangelho, conforme os registros dos evangelistas bíblicos, e também de informações outras, contrárias a esses registros, e ainda outras mais inseridas, numa linguagem bastante irreverente e irônica, como pensamento ou criação desse narrador evngelista, numa visão bastante contemporânea.
Desse modo, presenciamos que o narrador objetiva redimir a figura do Diabo que, antes do nascimento de Jesus, aparece tomando a figura do anjo da anunciação para revelar à Maria o nascimento de seu filho. A partir desse momento, o Diabo irá acompanhar Jesus até o último instante de sua vida. Vemo-lo na gruta, logo após o nascimento de Cristo, pouco antes da fuga para o Egito; vemo-lo na barca, quando ele e Jesus conversam com Deus, momento em que arrependido, além de pedir perdão a Deus, pede-lhe que novamente seja incluído entre os anjos, o que lhe é negado; tornamos a vê-lo no momento da morte de Jesus, quando ele vem molhar os lábios do agonizante.
As figuras de Jesus e de Deus também sofrem uma inversão de valores, isto é, passam Jesus de Messias à condição de um indivíduo conduzido pelas circunstâncias, inconsciente e involuntariamente, o que o leva a se espantar diante da revelação na cruz quando Deus lhe aparece. Cristo é apresentado como um ser incapaz de dirigir o destino dos homens, pois é uma criatura frágil, cheia de conflitos interiores, que duvida de Deus e que não se crê nenhum missionário.
Deus perde os seus atributos, sendo apresentado como um ser falível, insciente, que necessita da permanência do Diabo no Mal para poder sobrexistir.
Enquanto o Diabo é um ser previdente e providente, bondoso (atende às necessidades dos homens e de Jesus) e justo (julga com justeza os atos humanos, vide o comportamento de José), Deus, ao contrário, se realiza na morte dos homens, valendo-se da violência e da força para defender as sua idéias e os seus valores. É assim que o narrador nos apresenta esses personagens-chave de seu evangelho. O romance saramagueano, de fato, parodia não apenas os Antigo e Novo Testamentos, mas interpretações feitas pelos teólogos, principalmente os que apareceram a partir do século IV, da nossa era.
Estamos vivendo, segundo Roberto Vacca e Umberto Eco, uma nova Idade Média, permanente e transitória, na qual os homens tentam elaborar um futuro melhor para a humanidade. Permanente, porque a transitoriedade se prolonga a fim de atender todas as áreas das atividades humanas. É uma época, segundo Affonso Romano, de destruição para reconstrução. Os valores antigos são contestados e substituídos por novos. É natural, portanto, que no interregno da substituição de valores exista um aparente caos, para, desse modo, fazer com que o novo venha a ser efetivamente melhor que o anterior.
A teologia, interpretando o Evangelho, introduziu idéias e dogmas, alterando consideravelmente os ensinos bíblicos. Por causa disso, houve sempre vozes, principalmente a partir do século IV, que se insurgiam contra essas interpretações. E o aumento dos discordantes cresceu tanto que no século XII foi criada a Santa Inquisição ou o Tribunal do Santo Ofício com o objetivo de defender as verdades religiosas da Igreja, acontecendo isso em plena Idade Média.
Hoje, no entanto, já não existe o Tribunal do Santo Ofício nem outra instituição que se lhe compare e, por esse motivo, a contestação tem sido feita nos próprios meios religiosos, uma igreja criticando a outra em reciprocidade, assim como está ocorrendo nas artes, na filosofia e na literatura.
Esse período, a que chamamos transitório-permanenete, faz com que o sagrado seja trazido ao terreno das discussões para que, despindo-se de todo e qualquer tipo de irracionalidade, possa reaparecer em outra forma que ilumine o homem, engrandecendo-o. O evangelho segundo Jesus Cristo trouxe à discussão os temas bíblicos, através do Antigo e Novo Testamentos, para que, mediante uma nova leitura desse testamentos, o homem possa vir a ter uma visão de um deus que se preocupa, real e efetivamente com o gênero humano.
A Bíblia é um livro sagrado para os judeus, árabes e cristãos. Deus, a Inteligência Suprema, é o ser reverenciado pela humanidade sob nomes os mais variados: Alá, O Grande Arquiteto, O grande Todo, Jeová, Javeh, Elohim e Aquele que é. Jesus, para a cristandade é o Filho de Deus, o Messias, o Cristo, O ungido de Deus. São, portanto, entidades sagradas.
Quando os homens, pelas letras e artes, buscam dessacralizar Jesus e Deus, certamente estão profanando esse nomes, reduzindo-os à dimensão humana.
Quando os homens, contextualizando os registros sagrados, inserem anotações e conceitos contrários aos desses livros, dessacralizando-os, estão profanando os ensinamentos sagrados neles contidos.
Evangelho quer dizer boa-nova, porque, seguindo a ótica cristã, consola, conforta, esclarece, transmitindo esperanças. Destarte, os tristes e sofredores encontram consolo em seus ensinamentos; os fracos e os tíbios também encontram conforto e se fortalecem em suas páginas luminosas; para poderem caminhar rumo à própria redenção. Evangelho: boa nova, consolo e esperança.
Diante do exposto, este irônico e irreverente narrador, situado nos limites do sagrado e do profano, poderá, de acordo com a ótica moderna, ser considerado um quinto evangelista?

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